Abuso do Poder Religioso ou Abuso do Poder Eleitoral?

Decisões e recomendações recentes advindas tanto da Justiça Eleitoral quanto do Ministério Público Eleitoral, no que tange à participação das organizações religiosas no processo político, evidenciam o surgimento de algo que merece – a bem do Estado de Direito – a nossa atenção e cuidado. Refiro-me ao que tenho denominado de abuso do poder eleitoral, isto é, o uso equivocado e distorcido da legislação e do poder de polícia pelos órgãos e autoridades constituídas para a nobre tarefa de resguardar a segurança do voto e a lisura do pleito, a ponto de prejudicar o princípio constitucional que deveriam resguardar: a igualdade na disputa.

Para reforçar o ponto cito o “Aviso” emitido pelo juiz Mauro Nicolau Junior, coordenador da fiscalização da propaganda eleitoral no Estado do Rio de Janeiro. O ato, publicado “Ad Referendum” do TRE-RJ, “avisa todas as igrejas, e entidades de qualquer segmento religioso, que a veiculação de propaganda eleitoral nos templos, nas imediações e abordando pessoas que comparecem aos cultos revestem-se de caráter de absoluta ilegalidade sujeitando os infratores, todos os envolvidos, ainda que de forma indireta e omissiva e, também, os beneficiários, às consequências legalmente previstas, inclusive eventual interdição do local, apreensão de material e encaminhamento ao Ministério Público para as medidas cabíveis tanto na esfera eleitoral quanto criminal” (sic).

O “Aviso”, que contém cinco páginas, ressalta ainda: “O culto traduz um momento em que a relação entre a pessoa e Deus ou entidade que corresponda à fé que professa se afirma e reforça, pois nele o encontro com Deus se faz presente pelo diálogo. É esse um dos momentos capitais de expressão de fé e afirmação religiosa”.

Tal asserção é teologicamente brilhante, mas juridicamente impertinente. De fato, o art. 37, caput, da Lei n. 9504/97, veda a veiculação de propaganda de qualquer natureza nos bens cujo uso dependa de cessão ou permissão do poder público, ou que a ele pertençam, e nos bens de uso comum. Segundo o §4o do referido artigo, bens de uso comum, para fins eleitorais, são os assim definidos pelo Código Civil e também aqueles a que a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada.

Portanto, a vedação de propaganda nos templos não se deve à natureza da atividade realizada nestes ambientes; como se a proibição tivesse o propósito de proteger a prática espiritual das organizações religiosas, enquanto momento de diálogo e encontro com Deus. A vedação simplesmente ocorre porque o templo se equipara, para fins eleitorais, a bem de uso comum, acessível por qualquer pessoa da população. A intenção da lei, a sua ratio legis, não é afastar o elemento religioso do debate político, e não se fundamenta muito menos no tão propalado e mal compreendido princípio da laicidade. A intenção do legislador é afastar a propaganda dos locais que possam ser frequentados por uma grande quantidade de pessoas, de modo a desequilibrar a disputa do pleito, a exemplo de cinemas e clubes.

Se o desiderato do “Aviso” foi salvaguardar a igualdade da disputa, é de se questionar se aviso idêntico foi emitido para as outras entidades e locais que também podem receber acesso da população em geral. Eventualmente, os proprietários de cinema foram advertidos a não realizarem propaganda nestes locais, pois assistir a um bom filme talvez seja um momento de lazer de extrema transcendência pessoal.  Quem sabe, responsáveis por ginásios e estádios foram peremptoriamente informados sobre as consequências advindas da ofensa à lei eleitoral, especialmente quanto a possibilidade de interdição do local, apreensão de material e encaminhamento ao Ministério Público para as medidas cabíveis tanto na esfera eleitoral quanto criminal.

Caso tais providências similares tenham sido adotadas em relação aos outros locais e entidades em que não se permite a propaganda eleitoral, então a Justiça Eleitoral do Rio de Janeiro agiu com isonomia, sem privilegiar qualquer setor ou grupo da sociedade. Do contrário, estamos diante de um ato draconiano, que impõe o medo e a censura prévia, na medida em que elege um grupo específico da sociedade e contra ele dirige sua força legal. É o abuso do poder eleitoral se revelando, ainda que de maneira velada, por meio de discurso intimidante que tolhe a liberdade democrática e a efetiva participação política.

A usurpação do poder eleitoral igualmente ocorre quando são criados termos e institutos jurídicos ao arrepio da lei. É o caso do “abuso do poder religioso”, uma invenção doutrinária e jurisprudencial que pode levar à cassação do mandato por conta do “uso indevido da religião para fins eleitorais”. Tal conceito, além de não encontrar respaldo em nosso ordenamento jurídico, é assentado em pressupostos equivocados na compreensibilidade tanto da religião quanto do seu relacionamento com o Estado. A expressão traz consigo uma carga ideológica negativa da religiosidade e uma visão igualmente distorcida dos religiosos, tidos como desprovidos de discernimento racional e incapazes de pensarem autonomamente. Afinal, existiria também “abuso do poder sindical”, “abuso do poder ruralista” ou “abuso do poder ideológico”?

Embora o Tribunal Superior Eleitoral tenha assentado, no Recurso Ordinário nº 265308 – RO, que nem a Constituição da República nem a legislação eleitoral contemplam expressamente a figura do abuso do poder religioso, o fantasma desse instituto ainda paira sobre o Judiciário Eleitoral. Evidentemente, a decisão reconheceu que, embora o discurso religioso proferido durante ato religioso esteja protegido, em princípio, pela garantia de liberdade de culto celebrado por padres, sacerdotes, clérigos, pastores, ministros religiosos, presbíteros, epíscopos, abades, vigários, reverendos, bispos, pontífices, pais de santo ou qualquer outra pessoa que represente religião, enfatizou que tal proteção não atinge situações em que o culto religioso é transformado em ato ostensivo ou indireto de propaganda eleitoral, com pedido de voto em favor dos candidatos.

Concluiu também que embora não haja expressa previsão legal sobre o abuso do poder religioso, a prática de atos de propaganda em prol de candidatos por entidade religiosa, inclusive os realizados de forma dissimulada, pode caracterizar a hipótese de abuso do poder econômico, mediante a utilização de recursos financeiros provenientes de fonte vedada. Além disso, a utilização proposital dos meios de comunicação social para a difusão dos atos de promoção de candidaturas é capaz de caracterizar a hipótese de uso indevido prevista no art. 22 da Lei das Inelegibilidades. Em ambas as situações e conforme as circunstâncias verificadas, os fatos podem causar o desequilíbrio da igualdade de chances entre os concorrentes e, se atingir gravemente a normalidade e a legitimidade das eleições, levar à cassação do registro ou do diploma dos candidatos eleitos.

Noutras palavras, o TSE rechaçou a existência do “abuso do poder religioso”, mas enfatizou a possibilidade de abuso do poder econômico e dos meios de comunicação por meio da organização religiosa. Tal interpretação parece consentânea com a legislação e com a Constituição Federal. Todavia, a configuração do abuso do poder deve ser indene de dúvidas, diante da gravidade da sua repercussão. No caso em questão, a propaganda eleitoral irregular em templos religiosos não pode evidenciar, por si, a existência do abuso de poder. A sanha eleitoral pela cassação de mandatos é perigosa e põe em risco o princípio democrático, nesse e noutros casos. Como destacou o eleitoralista Frederico Franco Alvim: “As decisões de cassação deveriam ser decisões de ultima ratio, apenas para casos extremos”[1].

A presença das religiões no processo eleitoral deve ser vista com naturalidade, dentro de um ambiente plural e democrático. Tal participação é um ingrediente indispensável para o debate e amadurecimento das ideias que emergem durante a campanha política, período esse idealizado com o objetivo dos candidatos exporem à sociedade – via propaganda eleitoral – tanto seus projetos de governo quanto os princípios de natureza ética que embasam suas visões de mundo. Projetos de governo e propostas de políticas públicas não advém de um vácuo axiológico, mas partem de premissas éticas subjacentes que fornecem as diretrizes de agir do candidato e do seu partido político, o que torna natural o questionamento, a busca de informações e até mesmo o enfrentamento por parte dos eleitores em relação às ideias dos candidatos.

O princípio da laicidade não veda a participação dos religiosos na esfera pública, notadamente porque a liberdade religiosa, conforme define Aldir Guedes Soriano, é um direito fundamental, uma liberdade pública ou, se se preferir, uma prerrogativa individual em face do poder estatal[2]. Jonatas Machado defende que o princípio da laicidade ou da neutralidade do Estado “não pode ser usado, por parte das autoridades públicas e dos tribunais, como escapatória para o não envolvimento em questões religiosas, ideológicas ou morais”. [3]

Portanto, deve ser assegurado aos religiosos a participação na política, independente da confissão de fé que possuam, podendo, inclusive, escolher seus candidatos tendo como referência os valores morais e espirituais que embasam suas crenças, cabendo ao Poder Judiciário, essencialmente, coibir os excessos e as condutas que coloquem em risco a lisura do pleito eleitoral, de acordo com a legislação vigente.

Nesse sentido, Michael Sandel, filósofo e professor de Harvard, em entrevista à revista Época, quando questionado sobre a participação dos religiosos da política, respondeu: “(…) a política diz respeito à grandes questões e aos valores fundamentais. Então, a política precisa estar aberta às convicções morais dos cidadãos, não importando a origem. Alguns cidadãos extraem convicções morais de sua fé, enquanto outros são inspirados por fontes não religiosas. Não acho que devemos discriminar as origens das convicções ou excluir uma delas. O que importa é o debate ser conduzido com respeito mútuo”.[4]

As irregularidades e os abusos devem ser punidos à luz da legislação em vigor, sem, contudo, desbordar para uma proibição absoluta, preconceituosa e descabida, dando lugar ao abuso do poder eleitoral.


Valmir Nascimento Milomem Santos é especialista em Estado Constitucional e Neutralidade Religiosa (Universidades Mackenzie/Coimbra/Oxford). Tem mestrado na área de ética. Analista Judiciário do TRE-MT. Autor do livro Entre a Fé e a Política (CPAD, 2018).

[1] https://www.iprade.com.br/portal/no-brasil-gravidade-e-potencialidade-do-crime-eleitoral-e-medida-por-intuicao/

[2]  SORIANO, Aldir Guedes apud GALDINO, Elza. Estado sem Deus: a obrigação da laicidade na Constituição. – Belo Horizonte: Del Rey, 2006, (p. 14)

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